terça-feira, 2 de março de 2010

PAPO DE ÍNDIO


02/03/2010

Txai Terri Valle de Aquino & Marcelo Piedrafita Iglesias

CHOVERAM TERÇADOS E MACHADOS NAS MALOCAS DOS BRABOS NO ALTO RIO TARAUACÁ

O papo de hoje é uma entrevista com o Edemar Triuhelz, auxiliar de sertanista que até recentemente trabalhava na Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira (FPERE), chefiada pelo sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior. Na entrevista, ele fala detalhadamente sobre os sobrevôos realizados por ele e Meirelles em 7 de julho de 2005 nas cabeceiras dos rios Douro e Tarauacá, no município de Jordão, ocasião em que foram jogados oito sacos contendo 48 terçados e 40 machados nas proximidades de três malocas de brabos na TI Alto Tarauacá, uma das duas terras indígenas destinadas exclusivamente a índios isolados no estado. Soube da notícia pelos Kaxinawá do rio Jordão. Vários de seus líderes, professores, agentes de saúde e agentes agroflorestais vieram me contar, com muita admiração, que o Meirelles e o Edemar fizeram chover terçados e machados nas malocas de brabos no alto rio Tarauacá.

Pouco tempo antes, o sertanista e seu auxiliar haviam terminado a construção do Posto de Vigilância da Foz do Douro na TI Alto Tarauacá, subordinado à FPERE, uma das quatro Frentes contempladas pelo “Projeto de Proteção Etnoambiental dos Povos Indígenas Isolados na Amazônia Brasileira”, coordenado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), uma organização não-governamental com sede em Brasília, em parceria com a Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII) da Funai.

O mencionado Projeto, com duração inicial de três anos, conta com o apoio financeiro da Fundação Gordon e Betty Moore, de San Francisco (EUA), que disponibilizou recursos no valor de US$ 1.180.000,00 (hum milhão, cento e oitenta mil dólares), desde maio de 2004, com objetivo de conter as invasões de terras ocupadas por índios isolados na Amazônia, garantindo-lhes o uso exclusivo dos recursos naturais de seus territórios. Atualmente, cerca de 12 milhões de hectares de florestas ocupadas por povos indígenas isolados constituem as áreas de abrangência desse Projeto.

Além de reforçar a capacidade operacional das Frentes de Proteção Etnoambiental mantidas pela Funai no Vale do Javari e Purus (AM), Guaporé (RO) e Rio Envira (AC), provendo-as de meios materiais para melhorar a fiscalização e a vigilância das terras destinadas aos povos isolados, parte dos recursos da fundação norte-americana também está sendo empregada para promover a capacitação de novos quadros técnicos para trabalhar nas quatro Frentes de Proteção Etnoambiental.

Sabe-se, por outro lado, que há atualmente uma intensa movimentação dos índios isolados no lado peruano da fronteira em direção ao território acreano devido à intensificação da exploração predatória de madeira, mineração, perfuração petrolífera e até mesmo em decorrência de ações de narcotraficantes na selva peruana, nas proximidades da faixa de fronteira com o Brasil.

Certamente, esses sobrevôos e ferramentas jogadas nas malocas dos brabos foram custeados pelo Projeto patrocinado pela Fundação Moore. Nada contra ser generoso com os brabos. Eles realmente estão necessitando de novas tecnologias, especialmente terçados e machados, além de espingardas, munição, panelas de alumínio e outros bens industrializados. Com certeza, saquear essas ferramentas constitui um dos principais objetivos de suas excursões às casas de seringueiros no alto Tarauacá, ou às barracas dos Kaxinawá nas cabeceiras do rio Jordão.

Também nada contra as verdinhas dos gringos ajudarem os brabos, porque se sabe que na dotação orçamentária da Funai não existe recursos disponíveis para fazer a vigilância e fiscalização das extensas áreas ocupadas por índios isolados na Amazônia brasileira. O que se questiona é a forma sigilosa e anônima com que essas “doações” foram feitas. Na realidade, o que está por trás de tudo isso é a orientação da CGII-Funai de evitar, a qualquer custo, o contato direto com índios isolados. E o temor de que qualquer generosidade explícita em relação a esses povos possa vir a ser interpretada por eles como início do contato. O que deve ter passado pelas cabeças dos índios isolados quando viram um pequeno avião dar razantes e, de porta aberta, jogarem terçados e machados nos terreiros de suas malocas?

Enfim, penso que já está passando da hora das Frentes de Proteção Etnoambiental da Funai estabelecerem uma nova relação com os índios isolados na Amazônia brasileira. E que, aqui no Acre, essa relação seja marcada pela generosidade, transparência e não pelo anonimato.

A entrevista foi realizada na sede do município de Jordão, no início de agosto de 2005, e contou com a prestimosa participação do sertanista Antonio Luiz Batista de Macedo. Com a palavra o Edemar. (Txai Terri Aquino)

Txai: Então Edemar, com um sobrenome desse, você é mesmo de onde?

Edemar Triuhelz: Eu nasci no Rio Grande do Sul, mas me criei em Mato Grosso. Então, sempre brinco dizendo que sou matucho, gaúcho de Mato Grosso. Meus pais são gaúchos, que se mudaram para Mato Grosso quando ainda era pequeno. Por isso não posso desvalorizar a cultura daquelas misturas de raças que é o Mato Grosso. Me identifiquei muito com o centro oeste. Não desconsidero minhas origens.

Macêdo: E com índios isolados, desde quando você trabalha?

Edemar: Fiz um estágio na OPAN (Operação Amazônia Nativa, antiga Operação Anchieta) em 1992. Logo depois, comecei a trabalhar com diferentes povos indígenas, fazendo um trabalho diretamente ligado à base, um trabalho nas aldeias mesmo, preocupado mais com os conflitos em terras indígenas, questões ligadas à organização interna nas aldeias, as vezes, junto com outros colegas da OPAN, que trabalhavam com educação indígena diferenciada, segurava um pouco a onda da saúde indígena, mas não sou dessa área. Quando a gente tá em área faz de tudo e, na ausência muitas vezes de órgãos do Estado ligados à saúde pública, aí acaba sobrando para gente fazer esse trabalho junto às comunidades indígenas.

Txai: Quando foi que você chegou no Acre?

Edemar: Cheguei ao Acre no final do ano passado. Passei o Natal de 2004 em Feijó junto com o sertanista Meirelles. Logo depois subimos o rio Envira rumo ao igarapé Xinane, onde tivemos uma experiência de 40 dias na base da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira. Era eu e um colega meu chamado Fernando Niemeyer. Antes disso, fizemos um estágio na base da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. Permanecemos 30 e poucos dias por lá, especialmente na foz do Ituí com o rio Itaquaí, onde tá situada a base daquela Frente.

Txai: Eu estava no rio Jordão, quando soube que vocês sobrevoaram e jogaram 48 terçados e 40 machados em três malocas de brabos na TI Alto Tarauacá. Os Kaxinawá comentaram muito esse assunto e riam a vontade. Teve um deles que brincou comigo dizendo que você e o Meirelles fizeram “chover canivete nas malocas dos brabos”.

Edemar: Nós tomamos essa decisão em função da saída de vários índios isolados de suas aldeias para saquear casas de seringueiros regionais para conseguir basicamente ferramentas de trabalho. Eles andam muito longe de suas aldeias em busca desses instrumentos de trabalho. Pela ação deles nas casas dos regionais, a gente percebeu que eles precisam dessas ferramentas, principalmente terçados e machados. Quem já usou essas ferramentas na mata para colocar roçado e de repente fica sem esses instrumentos, você sabe que a vida fica muito difícil. Por isso, eles invadem as casas desses regionais justamente para conseguir essas ferramentas. E com a grande presença há uma década atrás de regionais, dos seringueiros, eles tinham, de certa forma, mais facilidade de se apossar desses bens e conseguir terçados e machados para fazer suas roças, como a gente observou claramente no sobrevôo. Eles fazem a poda das árvores total. A roça deles é bem, como se diz, de pau aparado, não fica uma árvore em pé. A gente percebe que eles já utilizavam machados so para derrubar as árvores de seus roçados. Eles já trabalham há muito tempo com machados e terçados, que eles se apossaram nas casas dos seringueiros, para fazer as roças deles. E nessas saídas, o que eles têm buscados claramente são esses dois tipos de ferramentas. Eles também levam outras coisas, como roupas, panelas de alumínio e materiais de pesca e de caça. Até espingardas e munição, eles levam. O objetivo maior dessas andanças deles é o de buscar ferramentas. Então, a gente achou por bem lançar essas ferramentas de avião nas proximidades de suas malocas, mas no anonimato. Lançamos de avião oito sacos dessas ferramentas, com seis terçados e cinco machados dentro de cada saco. O objetivo dessa missão foi de diminuir a pressão que eles exercem na casa dos seringueiros regionais. Essa pressão dos isolados, inclusive, já tá acontecendo até fora dos limites da Terra Indígena Alto Tarauacá, já demarcada e destinada aos índios sem contato. Têm pessoas que podem discordar da gente ter jogado de avião e no anonimato machados e terçados nos arredores das malocas de índios isolados. Acho até que discordam da gernte e pensem diferente essa relação com os índios isolados do estado, que vejam diferente e pensam diferente da gente. Cada um tem direito de expressar a sua opinião, mas fizemos isso para diminuir a pressão dos isolados sobre as famílias dos seringueiros regionais, que vivem nas cabeceiras do rio Tarauacá, nas proximidades do Posto de Vigilância da Funai na Foz do rio Douro. Numa das casas desses seringueiros, vi crianças tremendo de medo dos índios isolados que apareceram repentinamente por lá. Fui lá pessoalmente, conversei com eles e constatei que estavam com muito medo, principalmente as crianças e as mulheres. Fui lá e fotografei tudo, conversei com essas pessoas e vi a situação toda e o risco que eles correram, podendo levar flechadas desses índios isolados, que apareceram nas proximidades de suas casas. A sorte foi que os regionais usaram a cabeça e atiraram para cima, não atiraram neles, porque eles correram atrás dos índios depois. Se eles quizessem ter alvejado os índios, eles tinham alvejado. A gente já tinha conversado com esses seringueiros regionais, já tinha alertado para o perigo e recomendado que eles não atirassem diretamente nos índios, não os alvejassem nem os ferissem, tampouco matassem esses índios, porque senão poderia haver a vingança dos isolados, como já aconteceu muitas vezes tanto nas cabeceiras do rio Douro quanto nos altos rios Tarauacá e Jordão.

Macêdo: O que vocês efetivamente jogaram de avião nas malcoas dos brabos?

Edemar: Foram terçados e machados. Não me lembro exatamente quantos foram. Se não me engano, foram oito sacos com meia dúzia de terçados e cinco machados em cada saco.

Macêdo: O que vocês observaram nos sobrevôos realizados nas malocas dos brabos?

Edemar: Vimos três grandes malocas de índios isolados e os roçados deles. Olha, eles são bons agricultores! Isso deu para notar claramente. Eles zelam muito bem os seus roçados, onde plantam mandioca, batata, milho e ainda cultivam bananais. Constroem suas grandes malocas tradicionais, compridas e muito bonitas. Têm os roçados bem aparados, onde se destacam o plantio de milho. O milho tava bonito, deu para ver bem do avião. O ideal teria sido sobrevoar essas três malocas de helicóptero, porque de avião tudo é muito rápido. Apesar do avião ter dado várias voltas sobre as malocas e os roçados dos isolados, foi tudo muito rápido!

Txai: Por que ser generosos com os brabos só no anonimato?

Edemar: Sei que isso é um assunto polêmico e que vai provocar muitas discussões. Mas repito de novo o que já falei. Uma coisa é você pensar, ver as coisas de fora, mesmo assim cada um tem o direito de ter a sua opinião. Outra coisa é quem vive o dia a dia numa base ou posto de vigilância de uma Frente de Proteção Etnoambiental. Quem tá na ponta, é para quem sobra a coisa. Vi a expressão de medo nas faces das crianças de nossos visinhos seringueiros e tudo o mais. O que se poderia fazer para evitar os conflitos armados entre índios isolados e regionais do alto rio Tarauacá? No curto parazo de tempo, o que a gente poderia fazer para evitar que isso acontecesse de novo, ou coisa mais grave ainda? Então, foi por causa disso que a gente jogou essas ferramentas nas proximidades das malocas desses índios isolados. Terçados e machados para utilizar no dia a dia. A gente espera que com isso diminua um pouco a saída deles. E efetivamente diminuam suas pressões sobre as casas dos seringueiros das proximidades do Posto de Vigilância da Foz do Douro. Não sei se vai dar o efeito esperado, mas foi uma tentativa para se evitar outros possíveis conflitos armados entre isolados e seringueiros no alto rio Tarauacá. Fizemos isso mais para amenizar esses conflitos interétnicos, que poderão gerar consequências graves para os índios isolados.

Macedo: Qual é a infraestrutura deste Posto de Vigilância da Foz do Douro?

Edemar: A gente fez mesmo algumas casas, como se diz, na marra, por falta de recursos. Então, fizemos uma pequena casa com uma cozinha e um quarto, depois construímos uma casa maior, com três quartos e uma sala. Essa é a base que temos hoje na Foz do Douro. Contratamos alguns moradores da região para trabalhar lá, porque eles, além de bons mateiros, conhecem bem a realidade local. A gente precisa de pessoas que conheçam e saibam andar na floresta, que conheçam e já conviveram muitos anos na região. E a gente conversa muito com eles, deixando bem claro que o nosso trabalho é o de fazer a proteção desses povos isolados. Outro ponto do nosso trabalho é fazer a proteção ambiental da terra indígena, evitando que madeireiros, caçadores, pescadores e outros regionais invadam a terra indígena, como acontecia até bem pouco tempo atrás, que resultaram em mortes de índios isolados e também de seringueiros regionais, inclusive de mnlheres e crianças de ambos os lados.


Txai Terri Valle de Aquino & Marcelo Piedrafita Iglesias

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